quarta-feira, 28 de março de 2012

Luto



Hoje, aos 87 anos, morreu o cartunista, escritor, dramaturgo e humorista Millôr Fernandes. A causa da morte foi uma falênia múltipla dos órgãos.

Um dos maiores gênios da intelectualidade brasileira, Millôr deixou uma vasta obra, perpassando por todos os gêneros literários com grande maestria. Um dos destaques em sua obra são os aforismos (máximas ou sentenças que em poucas palavras contém uma regra ou um princípio de grande alcance).

O corpo do escritor será velado a partir das 10h de quinta-feira (29) no cemitério Memorial do Carmo, no bairro do Caju, no Rio. Segundo a assessoria do cemitério, o corpo será cremado no Crematório da Santa Casa.

Conheça a biografia de Millôr Fernandes escrita por ele mesmo:

1924

Nascido Milton Fernandes, no Meyer, em 16 de agosto. Ou em 27 de maio? Ou em 27 de maio do ano anterior? Há desencontros de opinião na família. Na carteira de identidade: 27-05-1924. Meu amigo, Frederico Chateaubriand, sempre repetia, quando se falava que alguém estava "muito moço", isto é, aparentava menos que a idade que tinha: "Idade é a da carteira". Isto é, não adianta ter qualquer esperança contra a cronologia. No meu caso talvez a carteira esteja (um pouquinho) a meu favor.

  1925

Morto meu pai. Nessa idade a orfandade passa impressentida. Mas a família - mãe com quatro filhos - cai de nível imediatamente.

1931

Entrada para a Escola Enes de Sousa, no mesmo Meyer, educandário dirigido por Isabel Mendes, mestra extraordinária que mais tarde receberia a homenagem de ter o colégio batizado com o seu nome. Enes de Sousa, só fui saber quem era muitos anos mais tarde, nas memórias de Pedro Navas. Um abolicionista, se é que isso existe. 
  1934

Morta minha mãe. Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença. 

1934 a 1937

O período dickensiano, vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito. A família dispersa, os quatro irmãos cada qual pro seu lado, tentando sobreviver. 

1938

15 de março: início da profissão de jornalista. 

1938 a 1942

Liceu de Artes e Ofícios, onde um dia um professor deteve a massa dos alunos que desciam as enormes escadarias e, no meio de todo mundo, advertiu-me para que eu nunca mais zombasse de um colega. "As pessoas podem perdoar que você bata a sua carteira mas jamais perdoarão isso." Aprendi.

1941

Descubro, aos 17 anos, que não me chamo Milton, mas Millôr. Acho bom, não mudo, e o nome logo 'pega'.

 1943

Começam os anos gloriosos da revista 'O Cruzeiro', que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000. 

1944

Com tio Viola, chefe da gráfica 'O Cruzeiro', responsável por minha entrada no jornalismo. Viola, nome da família pelo lado italiano, teve recentemente uma possibilidade de glória. Eu vi o Papa João Paulo I dizer na televisão: "Todos os Violas do Brasil são meus primos." Mas morreu logo depois. 

 1946

A vida era bela e não sabíamos. Ou sabíamos? Aqui, Péricles Maranhão, autor da figura mais popular no humor brasileiro de todos os tempos: 'O Amigo da Onça'. Canhestramente faço o 'amigo' da foto. 

1948

Na foto com Walt Disney, no estúdio dele, em Hollywood. Foto cuidadosamente posada. Nessa época eu ainda acreditava que Disney sabia desenhar. Só mais tarde, lendo sua biografia, aprendi que até aquela assinatura bacana com que ele autentica os desenhos é criação da equipe. 

1949

Comecei a programar viagens fora do país. Primeiro em países da América do Sul, depois Estados Unidos. Deixei a Europa pro fim. Ainda era um acontecimento, viajar. 

1950

O sucesso de 'O Cruzeiro' faz os jornalistas virarem notícia. Na redação, entrevista para o rádio, uma espécie de televisão da época, muito melhor, porque sem imagem. 

1951

Viajo bastante pelo Brasil, coisa que sempre gostei de fazer, mas de carro, única forma de sentir as tremendas distâncias. 

1952

Faço questão que o ministro brasileiro me batize nas águas do Rio Jordão, em Israel. Cada um tem o São João Batista que merece. 

1953

Vice-campeão mundial de pesca ao atum na Nova Escócia. Nunca tinha pescado em minha vida e nunca peguei um peixe. Uma longa história que não cabe aqui.

1954

Compramos por Cr$ 2.700 um apartamento no Rio, num lugar mais ou menos distante, chamado Vieira Souto. Quando a granfinada soube, correu atrás de mim e o lugar virou 'status', o metro quadrado mais caro do mundo. Hoje a portaria da minha casa é o centro de prostituição - na sua quase totalidade exercida por travestis - da cidade. E de qualquer maneira a janela do meu apartamento, no quarto andar, é o local ideal para um sociólogo amador. 

1955

Cobertura jornalística de campanha eleitoral. Aí conheci um jovem e engraçado político chamado Jânio e um homem esquisitamente ético chamado Milton Campos. Glória das glórias: ganho o primeiro lugar num concurso de desenhos em Buenos Aires, junto com Steinberg. 

1956

Festival de Cannes, casamento de Grace Kelly. Este acontecimento até hoje rende mentiras por parte de muitos jornalistas. Guardo as minhas para momentos insípidos de conversação.

1957

Primeira exposição de desenhos no Museu de Arte Moderna, naquela época uma sala em baixo do Ministério da Educação. Melhor cenógrafo do ano. Por quê? 

1958

Um ano ou dois antes, não estou certo, nosso grupo implantava o frescobol em Ipanema. Me lembro que antes apareceu uma besteira chamada 'la pelote basque sans fronton'. Eu me auto-proclamei campeão do frescobol do posto 9. Mantive o título por muito tempo: quando alguém jogava melhor do que eu, eu dizia que ele era do posto 8.

1960

Minha peça 'Um elefante no caos' estréia depois de uma briga enorme com a censura, transformada num excelente espetáculo pela genial direção de João Bittencourt. Uma das poucas vezes que um diretor melhorou um trabalho meu.

1961

Exposição de desenhos na Petite Galerie. Viagem ao Egito. Voltamos correndo com a renúncia de Jânio. 

1963

Uma "questão religiosa" me coloca em conflito com a tradicional 'ética' dos 'Diários Associados'. Num discurso público, declaro: me sinto como um navio abandonando os ratos.

1964

Preparando o lançamento de 'O PIF-PAF', quinzenal que, em 1979, o serviço de informações do exército consideraria oficialmente como o início da imprensa alternativa no Brasil. Ainda bem, porque fecharam o jornal no oitavo número e eu fiquei devendo 21.000 cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais.

1965

"Liberdade, Liberdade", com Flávio Rangel. Um barato no meio do caos. Depois a censura proíbe. Como proíbe também, na íntegra, "Este mundo é meu", com Sérgio Ricardo.

 1966

Cada vez me meto mais, profissionalmente, no teatro. Traduções, adaptações, originais. Representamos, no Largo do Boticário, a versão musical de "Memórias de um Sargento de Milícias", só com atores negros. 

1967

Topo fazer o ator ao lado de Elizeth Cardoso e o Zimbo Trio. Uma experiência inesquecível, que outras ocupações não me deixaram repetir. 

1968

O período efervescente do Pasquim. Parecia até que o país existia e que certa socialização, confundida com uma fugida fraternidade, era possível. 

1970

Sempre viajando pelo Brasil. 

1971

A 'parada' com o sistema engrossa. Quase não publicamos nada inteligível e o teatro fica praticamente impossível.

1972

Volto a me interessar por livros. Lanço ao mesmo tempo "A Verdadeira História do Paraíso" e "Trinta anos de mim mesmo", um resumo de anos de trabalho, numa noite de autógrafos denominada "Noite da Contra-incultura".

1973

Promovido a cidadão mineiro, afinal, pela Câmara de Conceição-de-Mato-Dentro.

1975

Exposição na Graffiti. Fim da censura no 'Pasquim'.

1976
Escrevo "É...".

1977

Na foto eu tenho a rara oportunidade de dar alguns esclarecimentos políticos a Mário Lago. 

1978

Um trabalho muito mais difícil do que podia parecer: a adaptação de "Deus lhe Pague".

1979

Aos poucos, venho descobrindo mais o Rio Grande do Sul, onde só tinha estado há muito tempo. Vou me agauchando. 

1986

Compro o primeiro computador, um XT a vapor, mesmo assim considerado por muitos uma extraordinária peça de ficção científica.

1988

Comemoração de 50 anos de jornalismo. 25 de março, na casa de Técio Lins e Silva e Regina Pimentel.

1996
Com Monique Duvernoy, Fernando Pedreira e Cora Ronai, em Auvers-sur-oise.

1997

Com Cora Ronai e Ocimar Versolato, jantando na casa de Monique Duvernoy e Fernando Pedreira.

2000
Lançamento do saite "Millôr Online", com festa no Copacabana Palace, Rio.


Para saber mais sobre esse grande escritor, acesse o site oficial:


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